Cena de Despertar da Primavera recriada pelo Criô na Casa da Ribeira em 4 de agosto de 2024 | Foto: Brunno Martins
Cena de Despertar da Primavera recriada pelo Criô na Casa da Ribeira em 4 de agosto de 2024 | Foto: Brunno Martins
24/10/2024 | Por Marlos Ápyus

Eu e a música

Mais do que um passatempo, a música se tornou uma ferramenta de superação em meio a crises de ansiedade

A morte do meu pai é, com folga, o episódio mais traumático da minha vida. Quis o destino que, aos 9 anos de idade, eu estivesse ao lado quando um AVC o fez sofrer fortes convulsões. E que coubesse a mim e à caçula corrermos pela vizinhança atrás de um socorro que de pouco adiantaria. Entre o derrame e a notícia da morte, passaram-se 5 dias de poucas novidades. Exceto pelo “Marina, morena Marina, você se pintou” que ouviram nos corredores do hospital pouco antes do coma profundo. Assumimos que, num momento daqueles, a opção por cantar seria um sinal de que ele estava e ficaria bem. Não imaginávamos que, na verdade, alucinava, algo que só nos seria esclarecido após a constatação do óbito. Ainda assim, gosto de acreditar que o melhor pai do mundo morreu reprisando o que fazia nos momentos de maior felicidade. E justo com uma de suas canções preferidas. Quantos podem se dar a esse luxo?


A notícia da morte, claro, foi devastadora. Lembro de, em dado momento, eu não conseguir me manter de pé e de banhar o chão com minhas lágrimas. Lembro também da sensação de que aquilo jamais teria fim, de que aquele mal-estar insuportável nos consumiria para sempre. Mas, ainda no fatídico dia, a TV exibiu um comercial que usava como trilha “When The Saints Go Marching In“. E eu, que nada entendia da letra, sem perceber, balbuciei a melodia do clássico de Louis Armstrong. Logo fui repreendido por familiares que achavam inadequado cantarolar algo tão feliz em um dia tão triste. Mas, de alguma forma, a música me sinalizava que eu conseguiria, em algum momento, domar aquela dor.


Sim, eu gostava de música. Quem não gosta? Mas, curiosamente, só fui de fato fisgado em um evento esportivo. No caso, numa abertura de jogos estudantis animada pela banda Grafith. A arquibancada circular do ginásio nos permitia dar a volta por toda a quadra, e eu tive a curiosidade de conferir a visão que os músicos tinham da plateia. E o que vi foi um mar de rostos felizes saltando em ondas de sorrisos. De imediato, pensei: eu preciso dessa felicidade para mim. Pouco tempo depois, pedi ao meu irmão que me ensinasse o que sabia a respeito do violão que, uma década antes, ele havia ganhado do nosso pai.


É raro que eu fique sem um violão ao alcance. Diariamente, coloco um no colo e, com ele, arrisco qualquer tipo de som. Sempre encarei como um mero passatempo, até perceber o quanto a ansiedade era um problema em minha vida. E que não ter um violão por perto é perder uma ferramenta importante para administrá-la. Ciente do mal que a ansiedade provoca nos seres humanos, chego a me perguntar se o violão não me é um instrumento literalmente vital. Bom… Sei apenas que Nietzsche chegou a dizer que a vida sem música seria um erro. E concordo com ele.


A cena está bem marcada. Anderson e Well olham para mim. João pergunta: “Melchior Garbor, você escreveu isso?”. Eu levanto a cabeça. No que a abaixo, todos os integrantes da banda batem nove vezes seguidas no instrumento que estiver em suas mãos. Contamos até quatro e repetimos a performance, dessa vez ao som do “sim” gritado por Alli. A cena aos poucos se transforma até termos todo um elenco de 20 atores saltando no palco aos berros de “blá blá blá“. Ao fim, gritamos todos: “vá se reiar” e concluímos a dança quase tribal com gestos obscenos. É só aguardar meio segundo, ou menos, para o aplauso efusivo ressoar da plateia.

Para mim, essa é uma das definições possíveis de felicidade.

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pix@apyus.com

Publicado por

Marlos Ápyus

Jornalista e Músico

Um comentário em “Eu e a música”

  1. Não sabia sobre sua história. Aliás, não sabia nada além do fato de vc ser jornalista e, antes disso, do quão phoda (necessária, eu diria) é sua música, que conheci através da Experiência Apyus.
    Sinto que pude me aproximar um pouco mais de vc através do seu relato, da sua história com seu pai e desde que o conheci admiro seu trabalho musical, só que agora ele passa a ocupar outro lugar pra mim.
    Pretendo assistir ao seu trabalho com teatro em breve. Parabéns por tudo, Sr. Apyus!

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